sexta-feira, dezembro 31, 2010

Medos dos cães

Medo dos cães, meu Pai:

Lélia Almeida.

Hoje eu sei que o medo é frio. Como que metálico. Como devem ser os trilhos por onde deslizava o trem que levava as mulheres da família para fazer o procedimento do outro lado da linha divisória, na fronteira. O procedimento sempre se faz longe de casa, que é pra não se deixar pistas. É assim desde que o mundo é mundo. E não vai mudar. Voltaram sempre quebradas, todas elas, o corpo dobrado no movimento desencontrado da cólica de um caracol vazio, as almas secas. É assim que todas sentem, hoje sei, embora não se fale muito no assunto. É frio, eu dizia, o medo. É gelado.  Como os trilhos que são como os objetos cortantes usados no procedimento.
Quando acordei vi um crucifixo na parede branca e cheguei a pensar que estava no céu. Uma freira se aproximou, me alcançou um absorvente, disse que eu podia ir e que a receita estava dentro da minha mochila. Desejou-me boa sorte. O ferro da cama antiga e os objetos cortantes, os trilhos, o medo é frio e metálico.
Minha amiga me esperava dentro do carro. Abriu a porta com cuidado e me ajudou a sentar e a colocar o cinto. Quando a casa ficou para trás eu disse que assim que eu tivesse o dinheiro... Ela respondeu que eu não me preocupasse, a gente sempre faz isso por alguém, essa é a paga, é assim que a gente paga, ela explicou. Chá de macela, o comprimido, cama e um frio que não passa. Sonhei nesse mesmo dia que você era uma menina, desde então quando penso em você, penso numa menina, por causa do sonho, deve ser. Minha mãe e minha avó não tiveram a mesma sorte na viagem de volta do procedimento. Sacolejaram no trem, mortas de dor e tiveram que dar a janta para as crianças e para os maridos e continuar a fazer a vida andar. Uma vida tão cheia que elas mal lembram, agora, e que talvez seja por isso que elas fiquem sem saber o que me contar sobre aquele dia. E sobre todos os outros que se repetiram ao longo de uma vida, quando elas tomavam o trem sem saber se voltavam ou não para preparar o jantar. Era assim naquele tempo, elas me dizem. E o tom da voz da minha mãe fica mais baixo, e o da minha avó, mais metálico.
Ao contrário do que aconteceu com elas, depois do procedimento fui de carro pela mesma estrada para a casa onde vivem agora o meu Pai e os cães de guarda. Fui para lá para descansar. Há mato sobre os trilhos e a máquina está enferrujada perto da estação. Diga que é cólica menstrual, essa é sempre uma boa explicação. E assim você vai pra cama sem muita explicação, ela me orientou, a minha amiga. O tempo passa e o procedimento é sempre o mesmo. Desde as agulhas de tricô e crochê atravessadas, chás, raspagens mal feitas, óbitos.
É frio o medo. E ácido. Não reconheço o cheiro do meu corpo. Suo e tremo de frio. Meu Pai toma o mate na frente da lareira enquanto uma voz grave, de homem, despeja monótona o noticiário na Rádio Belgrano de Buenos Aires. Meu pai dormita ao pé do fogo. Abro a porta e saio na noite gelada enrolada na ruana grossa. O céu imenso, o campo que parece um mar, a figueira. Sento perto do balanço quebrado e choro baixinho. Os cães começam a latir. Cuscos de merda, meu Pai sempre diz, um dia ainda matam um vivente e me encrencam. Estão furiosos. Começo a suar frio sob o peso da ruana e sinto o líquido quente escorrendo entre as minhas pernas, lembro que pensei, a bolsa estourou, pensei que você ia nascer, um delírio como uma estrela cadente jogada naquela imensidão, o campo. Você que não existia mais. O sangue que escorria era você não sendo. Comecei a chorar então e o que saía de mim era como um miado e isso deixou os cães mais loucos ainda. Foi então que ouvi a voz do meu Pai, onde você está, minha filha? Ele perguntou, entre brabo e assustado. Eu disse, tenho medo dos cães, tenho medo de morrer. Ele disse, vamos pra casa, e fique quieta que então eles vão sossegar também. Mal podia andar. E a dor que parecia um trem veloz sobre mim. Mas a voz do meu Pai me assegurava que se eu ficasse quieta tudo ia ficar bem, que os cães iam se acalmar.
Quando lembro daquela volta pra casa, ao lado dele, tenho uma sensação estranha, minha filha. Se é que posso lhe chamar assim. A de que um silêncio tomou conta da minha vida, como quando a gente abaixa o som da TV num filme de terror ou de suspense, pra não sentir medo. E de que tudo ficou bem então. Os latidos dos cães foram diminuindo dentro de mim e a minha vida foi se enchendo de silêncio. E de tudo o que o silêncio pode guardar, culpa, vergonha, medo,  essas coisas de mulher. E de uma saudade que nem eu entendo. Uma vida sem os seus barulhos, minha filha.
Uma vez que outra sonho com os trilhos e com os objetos do procedimento que ora brilham ora não, como relâmpagos, no escuro. E aí lembro que um dia você esteve aqui. E para que tudo fique em paz outra vez, volto a dormir e esqueço. Meu Pai tinha razão, posso lhe dizer isso agora, o silêncio é um santo remédio.

Um remédio que faz a gente se acalmar e ter a certeza de que a gente não vale nada.

quinta-feira, dezembro 09, 2010

Um texto leve

Um dos meus bilhões de fãs veio dizer que meu blog estava pesado, soturno e muito obscuro.


então resolvi fazer um texto diferente:


A insuportável leveza do ser

Era uma vez uma pluma. Ela vivia em um travesseiro, um travesseiro de plumas. Um belo dia sua dona recostou-se com mais força e ela acabou saindo por um buraco no travesseiro. subiu pelo ar, alcançou a janela e flutuou mundo afora.

Por uma dessas incríveis coincidências, pousou sobre os cabelos de uma linda menina, pequenina e magrinha. Tão leve quanto a própria pluma.

E a menina sentiu-se feliz e pensou que a pluma era um sinal de sorte.

E a pluma sentiu muito medo, e pensou que se a menina era tão leve quanto ela, só poderia ser um espírito, de alguém que já morreu...

só pode estar morta... pensava a pluma

só pode estar morta...

terça-feira, dezembro 07, 2010

Yukio Mishima

Mishimi era um chato de galocha

Era franzino e ridículo
Ele escreveu um livro que fez sucesso
E achou que sendo famoso, poderoso e rico seria alguém na vida
Então elaborou um plano
Seqüestrou um ministro
E tentou falar aos militares
Mas, de fato, ele ainda era um bosta rala
E ninguém o ouviu
Por isso ele acabou se matando
Pra terminar logo com a vidinha miserável que ele tinha

sexta-feira, dezembro 03, 2010

Algumas vezes não é possível parar

Retornando ao blog...
As idéias e as mãos sentem essa necessidade. Então que o acesso lhes seja concedido.


Há algo de brilhante, perturbador e sinistro na exposição dos órgãos

É feio, causa asco, nojo e aflição
Mas como também ouvi ontem, há beleza no horror
O arame farpado envolto no abdomem
Que é esticado até que se sinta cada ponta perfurando a pele
A lâmina que esquarteja a língua
O alicate que arranca as unhas dos dedos
O pedaço de vidro que passa ao longo do pescoço e rasga a carne
O ferro quente queimando os olhos
E é necessário que haja sangue
É necessário que o sangue não escorra, mas que jorre
E os corpos das vitimas, antes de morrerem, devem agonizar
E é muito importante olhar nos olhos desesperados de cada um
Para sentir a lágrima de total e completo pavor
Ouvir os gritos que imploram por misericórdia

Sim

Há uma beleza na destruição

Ao final de tudo
Ainda é preciso ver o último suspiro
Daqueles que experimentaram o clímax da vida
Que é justamente lutar por ela,
Um segundo antes de cessarem sua existência













 

quarta-feira, agosto 04, 2010

The End

Fim. Simples assim.
Hoje é o fim da minha aventura literária. Mais de 2000 livros depois, muitos textos, muita escrita, coisas boas e ruins, livros comprados e emprestados, textos sofridos, textos leves, blogs, estudos, aprendizados e tentativas. Coisas que deram certo, palavras que bateram como um soco no estômago, outras que eram um total desperdício. Livros mágicos, livros caóticos, difíceis de entender, às vezes parecendo impossíveis.
Aprendi muito lendo, aprendi muito de autores que nem conheço, defini quem eu sou com a ajuda deles. Passei a entender melhor o mundo, compreendi melhor as pessoas e descobri sentimentos e sensações que desconhecia.


Ontem aconteceu algo tão traumático, com tanta intensidade e de forma tão agressiva, que achei que iria morrer. Na forma literal da palavra.
Mas estou aqui. Sobrevivi.
E como todos aqueles que se aproximam tão perto da morte e voltam dizendo que "nasceram de novo", eu serei mais um clichê, eu também nasci de novo. Outro Wander morreu ontem, no meio da manhã, e outro aogra está aqui.

Chega de livros, chega de teorias, chega de estudo, chega de pensar, chega de analisar.
Fim do blog.

Provavelmente fim dos textos
Fim das teorias
Fim da achologia
Tenho um trabalho enorme pela frente.

E agora vou ser tudo que chamei de tonto.
Quero rir e quero dançar
Quero cantar no karaokê
Quero ser pateta na frente das pessoas
Quero fazer meu casamento ser melhor do que eu espero que seja
Quero viver
E depois de ontem, tudo será assim.

Meu amigo Schumann já havia me alertado: Você pensa demais
Minha adorável Claudia já havia me dito: Ame mais
E eu não ouvi
Não ouvi ninguém
E então quase morri
E foi preciso quase morrer para ver
Obrigado Schumann

Obrigado Claudia, por tudo que fez por mim, espero nunca mais, nunca mais mesmo, passar o que passei ontem, e conto com você para isso.

Dança de salão
Sábados de música
Rua
Festas
Viver a vida
Viver tudo
Intensamente
loucamente
uma vida irresistivelmente deliciosa
aproveitando cada momento
cada minuto
como se fosse o último
porque ontem, durante algum tempo, cada minuto parecia o último
por isso,
fim
vou ali viver
junto de quem me ama,
e que descobri que amo mais que tudo nessa vida
FUI

terça-feira, junho 22, 2010

Diferente

Hoje estou diferente. Me notei assim dum tanto que pensei, será que eu estou diferente mesmo? Então eu vim trabalhar e vi o símbolo da Fiat no volante do carro. E até o símbolo da Fiat era diferente. Que percepção será essa agora? Me dei conta de que estava eu muito perto do meu olho, e já explico: Eu normalmente tenho a sensação de que eu não sou o corpo inteiro mas sim a parte que fica dentro da cabeça. E esse eu fica mais pra dentro, mais perto do cérebo, não fica olhando com o olho, fica olhando de dentro da cabeça através do olho. Como se eu fosse uma espécie de nave, ou capacete, ou qualquer coisa e os olhos fossem o vidro pelo qual se vê lá fora. E hoje eu estava perto do olho. Bem na frente mesmo, dava a impressão de que eu via mais de mim, como quem se aproxima da janela e vê mais o exterior. Estou saindo de dentro de mim? Olhei minhas mãos, mãos grandes, e elas pareciam de outra pessoa. Você já se estranhou? Meu corpo, obviamente meu, parecia errado. E a sensação era do tipo "O que estou fazendo aqui? Tirem-me daqui!". Estranho. Como não me noto muito bem, posso estar passando por uma transformação silenciosa, mas não sei qual é. Lembrei-me do livro A Metamorfose e foi engraçado pensar "Será que vou virar uma barata gigante?". Acho que estou grávido de mim, gerando aqui na minha cabeça um novo eu, filho de mim, que vai aproveitar a carcaça do velho eu pra poder viver sem ter que morrer e nascer de novo. Se for isso, ótimo, poderei aproveitar nessa vida ainda, esse novo estranho, cruzamento de experiência e sofrimento, de prepotência e burrice, de controle e descontrole. Se não for, tanto melhor, não quero entrar na fase da sabedoria agora, ainda tenho novos, incríveis e apoteóticos erros para cometer. Então vou seguindo meus dias como se já os soubesse, e esperando que a sensação diferente termine por mostrar a que veio e o que devo fazer, porque ela é como esse texto, que fala e fala e não diz nada. Me sinto diferente, mas não sei de nada.

domingo, junho 13, 2010

Há alguns dias atrás passei por um desses momentos bipolares que são quase rotina em minha vida. Como toda e qualquer pessoa abençoada pelo transtorno bipolar de humor, tenho meus momentos de criatividade e outros não tão bons assim. Então, dias atrás passei por um momento desses não tão legais. E senti que precisava de carinho e atenção e compreensão.
Depois tudo passou. Como bem disse a Kilauea em seu Twitter "Não queira morrer hoje porque amanhã você vai querer dominar o mundo" (Alguém com Transtorno bipolar).
Daí que outra pessoa que gosto muito e também é meio assim bipolarizada, passou por um momento ruim, e precisou de carinho, atenção e tudo mais que a gente precisa. E eu não fui legal. E ouvi que não sei ser amável nessas horas.
Lembrei-me que na minha vez ela tinha sido exatamente o que eu esperava, e quando ela precisou eu fui exatamente o oposto.
Então o que fazer?
A natureza da pessoa não muda. Contrariando a Ludmila, ninguém muda. Pessoas evoluem e se controlam e amadurecem, mas basta um momento de grande emoção, boa ou ruim, e a essência legítima surge de volta.
Desta forma, minha natureza não permite que eu seja amável. Porque não foi isso que aprendi. Sou da geração que aprendeu que "homem não chora", e que terapia é "coisa de doido". Aprendi também que demonstrar alguma fragilidade era ser "um fraco". Em casa, meu pai me ensinou que a sua palavra era a última e definitiva (não estou aqui dizendo se era certo ou errado, se era a melhor intenção ou não, apenas os fatos). Cresci com tudo isso e agora aprendi a controlar-me, a forçar-me para ouvir o outro, a tentar colocar-me na situação do outro.
Tudo isso é muito lindo e faz sentido, mas quando a situação pede emoção, pede verdade, pede sentimento legítimo, então a natureza fala mais alto, e todo o auto-controle escorrega ladeira abaixo e resta somente você, você mesmo. E aí?
Eu quero controlar a situação e dizer algumas palavras e acabar com tudo.
Mas como fazer isso? Como controlar tudo à minha volta?
Como transformar o frio em calor?
Talvez por isso as pessoas tenham a necessidade de acreditar na reencarnação... para saber que ainda dá pra fazer diferente, da próxima vez...
Kilauea, às vezes eu falo coisas ruins, e às vezes falo coisas boas. Eu aprendi a conviver com um vulcão em erupção, que é lindo mas que também arde e queima, então eu peço, de coração, que aprenda a conviver com esta característica que é a minha marca mais constante: A inconstância.

segunda-feira, junho 07, 2010

Você está com raiva? Se não está nem perde seu tempo. Esse texto é com raiva. E em verdade vos digo que sempre que dirijo 1000 quilômetros eu fico muito cansado. E aí surgem os demônios. Não esses demoniozinhos com pé de bode, chifres e tridentes. Não esses vermelhos com caras terríveis. Esses bobinhos não. Tô falando dos demônios de verdade. Aqueles que existem, são criados mantidos e alimentados pelo nosso cérebro. Esses sim, aparecem quando estou cansado. E nada melhor que destruir algo para saciar a fome desses animais. Então agora, nesse exato momento, estou ouvindo Edith Piaf, música "Le Foule", que diga-se de passagem, parece ter sido gravada com um balde de alumínio na cabeça enquanto gargarejava com Listerine, por isso a voz de lata e o "R" fazendo bolhas. Mas estou ouvindo assim mesmo, e gostando, porque quero destruir alguma coisa.
Há toda uma beleza em destruir. Tornar feio o belo é bonito e dá gosto. E só é macabro para quem não entende ainda. Você aprende a gostar, e então, está livre. E o belo é o seu belo e não mais aquele belo tonto, ensaiado e sem graça.
A ha ha ha ha...... às vezes me dá uma dó de quem tem cachorro, porque os cachorros, sempre, sempre, sempre, são mais interessantes que seus donos.

quarta-feira, junho 02, 2010

O rapazinho

O rapazinho estava sentado no vaso, fazendo o número 2.
Paz, calma e serenidade
Tempo de pensar e refletir
Tempo de esperar
Esperar
Esperar
Esperar
Pronto
Serviço terminado
O rapazinho levanta e, como um forno de fogão novo, começa o processo auto-limpante
Mas eis que o inimaginável aconteceu, o rapazinho perdeu o equilíbrio e para não cair no chão, segurou-se com as duas mãos, uma em cada lado da parede.
Controle retomado, o rapazinho recompõe-se
E então percebe que na sua mão direita, aquela mesma que ele usou para apoiar-se na parede, estava o papel
É, o papel higiênico
O rapazinho olha para a parede e vê sua obra em estilo barroco espalhada como uma trilha vertical com destino ao céu...
Uma freada brusca na parede
O rapazinho morre de nojo
E joga o papel no lixo
Veste-se rápido e sai do banheiro
Mas deixa a lembrança na parede
O enfeite que lembra a todos que nada se cria nada se perde, tudo se transforma
Que bosta...

terça-feira, maio 04, 2010

...

Curitibano chega em casa, triste, cabisbaixo, e fala com sua mãe:
- Mãe?
- Oi filho.
- Sabe o que aconteceu hoje?
- Me conte.
- Eu vi um mineiro.
A mãe, que já era mais experiente na vida, logo compreende o tamanho do problema. Senta o filho no colo e diz:
- Meu Deus... Coitado... me conte tudo, tudo mesmo.
- Sabe mãe, eu estava chegando no trabalho, assim, normal, quando de repente o mineiro passou do meu lado mãe, e aí eu ia passar direto como sempre sabe, que é o certo mãe, mas aí mãe, ele virou pra mim e falou bem assim: “Bom dia!”! Assim mesmo mãe, na minha cara.
- Meu filho...
- Mas não parou aí mãe, ele continuou e me perguntou algo sobre estar tudo bem mãe. Ele olhou direto nos meus olhos mãe! E eu ouvi tudo: Desde “bom” até “dia!”. Mãe você não acredita, mãe. Tô tremendo até agora...
- Filho... Eu uma vez, saí de Curitiba. Eu sei o que você passou. Eu sei bem...
- Mãe, você não tem idéia de como estou agora mãe. Tá doendo muito...
- Olha só, eu vou ensinar uma coisa que aprendi com meus pais sobre esses mineiros.
- Fala mãe, me conta, qualquer coisa pra me ajudar.
- Quando ele olhar diretamente pra você e disser aquele, como é mesmo que ele disse?
- “Bom dia!”
- Então, isso, quando ele soltar esse bom dia, você desconta na hora, na lata, na mesma moeda. Olhe na cara do maldito e diga em alto e bom tom “Bom dia pra você também!”. Assim mesmo, desconte na hora.
- Mas mãe, vou falar diretamente com ele?
- No início eu também estranhei. Mas experimente, funcionou comigo. Eles continuam andando e não machucam mais você.
- Vou tentar isso amanhã mãe. Mas por favor, me faça mais um favor.
- Diga qual é meu filho. Pode falar.
- Marca consulta pra mim hoje na terapia... Tá doendo muito...
- Claro filhinho, claro...

terça-feira, março 09, 2010

Aline tinha acabado de chegar na casa da amiga. Tocou a campainha. A mãe atendeu:

- Ei Aline, vamos, entre!
- A Lulu tá aí? Aline perguntou pela amiga enquanto entrava.
- Ela foi ao mercado com o pai dela e já volta. Mas o Davi está lá no quarto. Se quiser, fique lá com ele enquanto ela não chega.

Davi era o caçula da casa. Quando ela entrou no quarto ele estava vendo televisão, um daqueles desenhos que só as crianças daquela idade conseguem assistir.

- Ei Aline, você quer ver o desenho comigo? Você veio ver a Lulu? Ela não está. Ela saiu com meu pai, ela...

Crianças não tem aquele tempo vazio entre o cumprimento inicial e quando a conversa se instala. Para elas, quando você chega, já está lá desde sempre.

- Claro! Respondeu ela ajeitando-se confortavelmente na cama dele.
- Aline, você já viu meu carrinho novo? Sabia que meu pai vai me dar um jogo do guerreiro? Ontem na escola um menino me empurrou mas eu cuspi nele e a professora falou pra gente parar... Mas não tem problema não, eu estou lutando judô e eu derrubo ele com um golpe. A minha mãe falou que não é pra lutar na escola mas todos os meus amigos lutam um pouco. Sabia que amanhã não vai ter aula? Vai ter apresentação lá na escola. Eu não vou porque eu não quero, mas meu colega vai. Amanhã eu vou jogar mais video-game porque hoje eu só joguei pouco porque minha mãe não gosta que joga muito...

Aline ia respondendo calmamente que sim, que viu, que entendia, e ria e deixava-se levar pelos devaneios do pequeno Davi.

- Mas sabe, eu não posso mais comer muito chocolate porque engorda, e se eu ficar gordo não vou poder jogar futebol. E a Lulu falou pra mim que se eu ficar gordo não vou poder tomar mais Coca-cola, nem fanta, só comer alface e coisa ruim. Voce viu que vai passar desenho novo? Só que é domingo de noite, mas minha mãe deixa eu ver, mas depois eu tenho de dormir, e eu também tenho para-casa demais, a professora sempre passa muito...

Os olhos de Aline estavam se fechando. O sono vinha chegando devagarinho enquanto escutava a voz animada que não parava de falar nunca mais.

- No Natal eu quero uma espada enorme, bem enorme. E uma bola também. Igual a bola da copa, sabe, com aquele desenho que tem nela. Quando eu crescer eu vou ser jogador de futebol e piloto aí quando eu não quiser jogar bola eu posso ir na corrida de carro e...

Aline já não ouvia mais. Adormeceu embalada pela voz constante e ritmada.
Ele ainda falou por mais algum tempo, até que percebeu que ela estava dormindo. Então saiu do quarto e foi direto até sua mãe.

- Mãe! Mããe!! Mãããee!!! Gritou.
- O que foi Davi?
- Mãe, a Aline gosta muito de mim.
- Eu sei meu filho, claro que gosta.
- Não, ela gosta muito, muito mesmo. Até o céu!
- Hum? O que ela te disse?

- Ela não disse nada. Ela dormiu enquanto eu estava falando com ela. Você não me coloca na cama pra dormir e fica falando e contando história pra mim? E eu gosto tanto de você que eu durmo né mãe? E ela dormiu igual eu, quando você fica falando comigo, então ela gosta muito de mim de verdade!

Lulu chegou do supermercado e encontrou a amiga dormindo enquanto Davi corria feliz pela casa. Sua mãe estava na sala, chorando, mas parecia feliz. Era um choro feliz.

quinta-feira, março 04, 2010

Ser feliz...

A gente vem ao mundo sem saber que vai ter que ser feliz
A gente nasce assim puro de sentimentos
Não sabe que ser infeliz é ruim
E que ser feliz é bom
Então alguém tem que vir até a gente e mostrar o lado "bom"
Porque ser feliz é bom
Então você aprende desde pequenininho, que você deve ser feliz
Não, você não pode ser infeliz, porque ser infeliz é ruim
E você precisa dar valor às coisas boas
Você precisa acreditar
Você precisa saber que ser feliz é que importa

E você começa a crescer, e começa a ver que a felicidade não é bem assim
Não é como você aprendeu, que não dá para ser feliz e pronto
Só querer ser feliz não te torna feliz
Então você aprende a segunda lição, que você deve fazer coisas que te deixam feliz
Porque assim você fica feliz por mais tempo
Já que apenas querer ser feliz não te resolve mais
E você brinca, você namora, e você aproveita a vida com amigos, você vai em festas, e curte a família
Você ocupa todo o seu tempo com o maior número possível de coisas que te deixam feliz

Então você cresce mais
E, mais uma vez, percebe que não é feliz
você "ficou" feliz, mas não "é" feliz
Você se atira ao trabalho
Você faz carreira, e viaja, e ganha bônus, elogios e recomendações
Você cria uma família e ela te deixa feliz
Vê seus filhos crescendo e eles te fazem feliz
Eles brincam, crescem, erram e acertam
Sua família é boa
e você está feliz

Então você cresce mais
E seus filhos te dão muitas alegrias, mas em algum momento você não é feliz
E seu casamento te dá alegrias, mas não te deixa feliz o tempo todo
Seu trabalho é estável, não tem surpresas, mas não é mais o mesmo
Você então pensa que a felicidade está ficando longe
Pensa que você errou em algum ponto pois deveria estar se sentindo melhor

Pensa que não aproveitou a vida pois estava ocupado buscando a felicidade

Você vê que se não estivesse tão preocupado em ser feliz
Talvez, e por isso mesmo, tivesse sido mais feliz
Você fica olhando para a frente
Para o futuro
E não sabe onde está o "ser feliz"

E então você descobre que tudo que fez, que tudo que te deu a sensação de estar feliz
Tudo isso
Foi compartilhado com alguém
Nada foi sozinho
Nada foi só seu

Você nunca esteve feliz sozinho

E você começa a perceber que ser feliz, não é uma propriedade sua, não é algo que você tem dentro de você
Ser feliz é sentir-se feliz, durante o tempo em que isso for possível
É aproveitar o instante de felicidade

Você vê também que ser feliz depende de mais alguém
E que você sempre procurou no lugar errado
Sempre procurou em si mesmo
Como sempre ensinaram
A procurar no seu íntimo, seu interior, seu bla bla bla
Grande besteira

Você entende então que a felicidade está no outro, e que você precisa dele para estar feliz
Que a felicidade é ter compartilhado com mais alguém
Que a felicidade, é, então, o outro.

A felicidade é o outro.

E você conclui que ainda há tempo para procurar os outros, procurar a verdadeira felicidade, encontrar aquilo que buscou a vida inteira nos lugares mais errados, impossíveis e improváveis.
E era tão simples
Tão fácil...
Tão acessível...

A felicidade é estar com o outro...
Que ironia.

sexta-feira, fevereiro 26, 2010

O dia em que eu entrei no pão que o diabo assou

É assou, não é amassou.
É o pão que o diabo assou.
O ônibus parece um pão de forma, em sua forma, e, apesar de ser azul, me lembra um pacote de seven boys, ou wickbold.
Meu carro está na oficina, uma senhorinha bateu na traseira enquanto eu estava parado no sinal. E lá fui eu então para o malfadado mundo dos ônibus.
Primeiro dia, 17:30, eu no ponto de ônibus. Ele chega, dou sinal, ele para, entro.
Vou em pé, não há mais cadeiras.
Carrego nas costas uma mochila pequena, mas suficientemente grande para incomodar os outros. Tiro a mochila das costas e carrego com uma das mãos. A outra mão fica firmemente agarrada aos ferros sebosos do ônibus. Você já cheirou sua mão depois de segurar os ferros sebosos dos ônibus? Quantas mãos sujas e suadas já se agarraram ali antes da minha? Asco.
O ônibus faz uma curva, depois freia, e acelera, e freia, e muda de pista, e acelera e freia. E pára no ponto. E arranca. E acelera. E depois freia.
Deus do céu! Será que ele nunca fez aula de física? Será que ele não sabe o que é força centrífuga, inércia, coriolis e tudo mais?
Me senti uma vaca no caminhão de transporte de gado. Na hora que freia, bate a cara na frente, quando acelera, bate a bunda atrás e quando vira bate as beiras dum lado ou do outro.
Mas não foi isso que doeu. Digo doeu porque doeu mesmo. O que doeu, e ainda dói, porque ainda pego o pão que o diabo assou, é o calor. Fora do ônibus, no sol, meio-dia, é mais fresquinho.
É simplemente ridículo entrar sequinho no ônibus e sair todo molhado, suor escorrendo nas costas e molhando a camisa, cara brilhando e mãos babadas de óleos de outras mãos.
O ônibus não tem ar-condicionado.
O ônibus não tem ar-condicionado!
Ei, você sabia que o ônibus não tem ar-condicionado?
Toda vez que entrar num maldito pão azul, lembre-se, ele não tem o maldito ar-condicionado.
Desci do ônibus no meu ponto. Suado, molhado, prostrado, com o mal de modorra, e, ao mesmo tempo, aliviado.
Faltam 26 dias para o carro ficar pronto. Eu preciso aguentar até lá. Eu tenho vontade de chorar, mas eu vou resistir. Eu vou procurar minha terapeuta e vou conversar com ela. Isso não se faz, isso não é justo.

Sem ar-condicionado...

HUmpf...

segunda-feira, fevereiro 01, 2010

Seria divertido

Se eu usasse armas, espadas, escudos ou outra coisa
Eu me divertiria
Cortando cabeças e degolando pessoas
Abrindo barrigas e expondo tripas
Ah, eu me divertiria
Eu abriria meus dois braços e num movimento ágil
Colocaria pra fora as vísceras do outro
Eu usaria uma lança
Para vazar os olhos
E usaria uma faca para tirar seu escalpo
Como eu me divertiria
Eu usaria um machado
Para separar as pernas do corpo
Eu mataria com crueldade
E a selvageria seria boa
A insanidade me pegaria no colo
E eu iria no seu embalo
Ateando fogo e envenenando a água
Matando os homens
e comendo suas carnes
Crepitando sobre o fogo de suas próprias casas
Seria muito divertido
Eu pularia sobre o outro
com um arame farpado
e faria um colar tão lindo
que eu mesmo poderia chorar
E eu veria a beleza da tragédia
E a graça da desgraça
Eu acho que me emocionaria
E eu me divertiria muito
Eu usaria alicates, facas, foices e lanças
Eu jogaria bombas e granadas
Traria para todos
O inferno na terra
E no auge da catástrofe
Eu pararia tudo
E usaria a máquina digital
Para tirar uma foto
E eu diria "sorria"
Porque seria divertido.

quinta-feira, janeiro 14, 2010

hummm......


Eu estava no trabalho quando resolvi ir ao banheiro.

Chegando lá percebi logo que o cheiro não era dos melhores pois alguém estava produzindo caca, ou cacando, se preferirem...

E, mesmo estando na frente da pia a uma boa distância do indivíduo poluidor, notei que o cheiro continuava me incomodando.

Foi daí que raciocinei: como não havia caca localizada debaixo do meu nariz, então, de alguma forma, a caca do colega estava saindo do vaso sanitário e indo em minha direção, ou seja, se eu identifiquei o cheiro da merreca é porque alguma espécie bem pequena de cocô gasoso invisível flutuou até mim. Eu estava cercado por todos os lados dos pequenos, invisíveis e xexelentos cocôs gasosos.

Já saindo do banheiro eu ainda pensava "mas que bosta", o que não é de todo errado...

Que nojo.