sexta-feira, dezembro 31, 2010

Medos dos cães

Medo dos cães, meu Pai:

Lélia Almeida.

Hoje eu sei que o medo é frio. Como que metálico. Como devem ser os trilhos por onde deslizava o trem que levava as mulheres da família para fazer o procedimento do outro lado da linha divisória, na fronteira. O procedimento sempre se faz longe de casa, que é pra não se deixar pistas. É assim desde que o mundo é mundo. E não vai mudar. Voltaram sempre quebradas, todas elas, o corpo dobrado no movimento desencontrado da cólica de um caracol vazio, as almas secas. É assim que todas sentem, hoje sei, embora não se fale muito no assunto. É frio, eu dizia, o medo. É gelado.  Como os trilhos que são como os objetos cortantes usados no procedimento.
Quando acordei vi um crucifixo na parede branca e cheguei a pensar que estava no céu. Uma freira se aproximou, me alcançou um absorvente, disse que eu podia ir e que a receita estava dentro da minha mochila. Desejou-me boa sorte. O ferro da cama antiga e os objetos cortantes, os trilhos, o medo é frio e metálico.
Minha amiga me esperava dentro do carro. Abriu a porta com cuidado e me ajudou a sentar e a colocar o cinto. Quando a casa ficou para trás eu disse que assim que eu tivesse o dinheiro... Ela respondeu que eu não me preocupasse, a gente sempre faz isso por alguém, essa é a paga, é assim que a gente paga, ela explicou. Chá de macela, o comprimido, cama e um frio que não passa. Sonhei nesse mesmo dia que você era uma menina, desde então quando penso em você, penso numa menina, por causa do sonho, deve ser. Minha mãe e minha avó não tiveram a mesma sorte na viagem de volta do procedimento. Sacolejaram no trem, mortas de dor e tiveram que dar a janta para as crianças e para os maridos e continuar a fazer a vida andar. Uma vida tão cheia que elas mal lembram, agora, e que talvez seja por isso que elas fiquem sem saber o que me contar sobre aquele dia. E sobre todos os outros que se repetiram ao longo de uma vida, quando elas tomavam o trem sem saber se voltavam ou não para preparar o jantar. Era assim naquele tempo, elas me dizem. E o tom da voz da minha mãe fica mais baixo, e o da minha avó, mais metálico.
Ao contrário do que aconteceu com elas, depois do procedimento fui de carro pela mesma estrada para a casa onde vivem agora o meu Pai e os cães de guarda. Fui para lá para descansar. Há mato sobre os trilhos e a máquina está enferrujada perto da estação. Diga que é cólica menstrual, essa é sempre uma boa explicação. E assim você vai pra cama sem muita explicação, ela me orientou, a minha amiga. O tempo passa e o procedimento é sempre o mesmo. Desde as agulhas de tricô e crochê atravessadas, chás, raspagens mal feitas, óbitos.
É frio o medo. E ácido. Não reconheço o cheiro do meu corpo. Suo e tremo de frio. Meu Pai toma o mate na frente da lareira enquanto uma voz grave, de homem, despeja monótona o noticiário na Rádio Belgrano de Buenos Aires. Meu pai dormita ao pé do fogo. Abro a porta e saio na noite gelada enrolada na ruana grossa. O céu imenso, o campo que parece um mar, a figueira. Sento perto do balanço quebrado e choro baixinho. Os cães começam a latir. Cuscos de merda, meu Pai sempre diz, um dia ainda matam um vivente e me encrencam. Estão furiosos. Começo a suar frio sob o peso da ruana e sinto o líquido quente escorrendo entre as minhas pernas, lembro que pensei, a bolsa estourou, pensei que você ia nascer, um delírio como uma estrela cadente jogada naquela imensidão, o campo. Você que não existia mais. O sangue que escorria era você não sendo. Comecei a chorar então e o que saía de mim era como um miado e isso deixou os cães mais loucos ainda. Foi então que ouvi a voz do meu Pai, onde você está, minha filha? Ele perguntou, entre brabo e assustado. Eu disse, tenho medo dos cães, tenho medo de morrer. Ele disse, vamos pra casa, e fique quieta que então eles vão sossegar também. Mal podia andar. E a dor que parecia um trem veloz sobre mim. Mas a voz do meu Pai me assegurava que se eu ficasse quieta tudo ia ficar bem, que os cães iam se acalmar.
Quando lembro daquela volta pra casa, ao lado dele, tenho uma sensação estranha, minha filha. Se é que posso lhe chamar assim. A de que um silêncio tomou conta da minha vida, como quando a gente abaixa o som da TV num filme de terror ou de suspense, pra não sentir medo. E de que tudo ficou bem então. Os latidos dos cães foram diminuindo dentro de mim e a minha vida foi se enchendo de silêncio. E de tudo o que o silêncio pode guardar, culpa, vergonha, medo,  essas coisas de mulher. E de uma saudade que nem eu entendo. Uma vida sem os seus barulhos, minha filha.
Uma vez que outra sonho com os trilhos e com os objetos do procedimento que ora brilham ora não, como relâmpagos, no escuro. E aí lembro que um dia você esteve aqui. E para que tudo fique em paz outra vez, volto a dormir e esqueço. Meu Pai tinha razão, posso lhe dizer isso agora, o silêncio é um santo remédio.

Um remédio que faz a gente se acalmar e ter a certeza de que a gente não vale nada.

quinta-feira, dezembro 09, 2010

Um texto leve

Um dos meus bilhões de fãs veio dizer que meu blog estava pesado, soturno e muito obscuro.


então resolvi fazer um texto diferente:


A insuportável leveza do ser

Era uma vez uma pluma. Ela vivia em um travesseiro, um travesseiro de plumas. Um belo dia sua dona recostou-se com mais força e ela acabou saindo por um buraco no travesseiro. subiu pelo ar, alcançou a janela e flutuou mundo afora.

Por uma dessas incríveis coincidências, pousou sobre os cabelos de uma linda menina, pequenina e magrinha. Tão leve quanto a própria pluma.

E a menina sentiu-se feliz e pensou que a pluma era um sinal de sorte.

E a pluma sentiu muito medo, e pensou que se a menina era tão leve quanto ela, só poderia ser um espírito, de alguém que já morreu...

só pode estar morta... pensava a pluma

só pode estar morta...

terça-feira, dezembro 07, 2010

Yukio Mishima

Mishimi era um chato de galocha

Era franzino e ridículo
Ele escreveu um livro que fez sucesso
E achou que sendo famoso, poderoso e rico seria alguém na vida
Então elaborou um plano
Seqüestrou um ministro
E tentou falar aos militares
Mas, de fato, ele ainda era um bosta rala
E ninguém o ouviu
Por isso ele acabou se matando
Pra terminar logo com a vidinha miserável que ele tinha

sexta-feira, dezembro 03, 2010

Algumas vezes não é possível parar

Retornando ao blog...
As idéias e as mãos sentem essa necessidade. Então que o acesso lhes seja concedido.


Há algo de brilhante, perturbador e sinistro na exposição dos órgãos

É feio, causa asco, nojo e aflição
Mas como também ouvi ontem, há beleza no horror
O arame farpado envolto no abdomem
Que é esticado até que se sinta cada ponta perfurando a pele
A lâmina que esquarteja a língua
O alicate que arranca as unhas dos dedos
O pedaço de vidro que passa ao longo do pescoço e rasga a carne
O ferro quente queimando os olhos
E é necessário que haja sangue
É necessário que o sangue não escorra, mas que jorre
E os corpos das vitimas, antes de morrerem, devem agonizar
E é muito importante olhar nos olhos desesperados de cada um
Para sentir a lágrima de total e completo pavor
Ouvir os gritos que imploram por misericórdia

Sim

Há uma beleza na destruição

Ao final de tudo
Ainda é preciso ver o último suspiro
Daqueles que experimentaram o clímax da vida
Que é justamente lutar por ela,
Um segundo antes de cessarem sua existência