"Seu nome era José Paulo Virgílio, mas todos o conheciam como Zé do Pó. Nada a haver com esta droga de droga que hoje assola o mundo, simplesmente porque estava sempre como um molambo, sujo e cheio de pó. Bebum inveterado, não havia sequer um boteco na pequena cidadezinha onde ele não estivesse ou passasse. A "via sacra" começava de manhãzinha, Zé do Pó seguia pros botecos acompanhado das crianças que iam pro Grupo Escolar.
- "Hei pingaiada ... oh pinguço..." - Gritavam as crianças em coro e algazarra enquanto Zé do Pó de cabeça baixa e com um andar de solavancos seguia para seus destinos. Vez em quando, ele batia o pé, sem parar de andar, como que querendo assustar aos moleques que chegavam muito perto. Aquilo era festa para eles que provocavam mais ainda.
Na frente da escola, ele sempre levantava a mão como que acenando um tchau enquanto as crianças adentravam, sem antes deixar de novamente gritar e zombar com o bebum.
Todos os donos de boteco conheciam Zé do Pó que permanecia na porta até que alguém lhe trouxesse uma ou duas doses de pinga. Ele demoradamente olhava, cheirava, jogava um pouco no chão (a do santo) e degustava numa só "talagada". Muitos destes mantinham um copo exclusivo e personalizado (um pedaço de papel colado com fita adesiva ao copo).
Vez em quando, estes mesmos donos de botecos reservavam serviços marginais para que Zé do Pó fizesse. E ele fazia, sem questionar: cortava grama (com ancinho), limpava quintais, trocava telhas, assentava tijolos, lavava caixas dágua, etc. Não havia o que ele não soubesse fazer.
Zé do Pó andava mais de vinte quilômetros por dia em sua "via sacra" aos bares; quando chegava ao último, voltava repetindo o ritual e chegava em casa quase à noitinha quando ia cuidar de sua horta e varrer seu quintal.
Zé do Pó era conhecido também por gostar de velórios; se tinha um novo morto na cidade, ele se banhava (banho de gato) colocava sua melhor calça remendada, uma camisa feita com saco de trigo onde dava pra notar o decalque do Moinho Catarinense, um paletó azul-marinho que ficava com as mangas próximas a seus cotovelos, de tão curto que era e um sapato Vulcabrás 757 que deixava ver seu dedão do pé.
Nestas ocasiões, ele se sentava numa cadeira num canto da sala, mas sempre próximo ao defunto, onde alguém lhe servia fartas doses de cachaça e bolo de fubá. [Ainda hoje, é comum no interior de Minas o ato de ir "beber o morto", quando no velório se toma cachaça e come-se bolão de fubá].
Com o passar dos anos isto se tornou um costume na cidade, tanto que quando Zé do Pó não aparecia num velório, fosse de pobre ou da família mais abastada, iam buscá-lo de carro, charrete, carroça ou qualquer outro meio de transporte que a família tivesse. Quando uma vizinha morreu, seu filho foi buscar Zé do Pó numa bicicleta cargueira. Quando chegaram ao velório, ele estava com o nariz todo ensangüentado dos tombos que havia levado.
Lembro-me como se hoje fosse, o dia em que uma bomba destas de festas de São João estourou na minha mão quase me amputando os dedos. Quando cheguei a Santa Casa (hospital), o alarido era grande, pois Dona Geraldina, uma senhora muito conhecida e bemquista por todos, precisava de uma transfusão de sangue e poderia vir a falecer se isto não fosse feito. E devido às crendices não aparecia ninguém pra fazer a doação.
- "Eu vim fazer a doação de sangue que a Santa Casa está precisando." - Uma voz forte, bem articulada e grave vindo da porta da Santa Casa.
Era Zé do Pó, que como nos botecos, permanecia inerte e com a cabeça baixa, por detrás da porta de vidro. Esta foi a primeira e única vez que ouvi a sua voz.
- "Mas ocê num pode rapaiz, cê tá loco!!!" - disse uma das enfermeiras.
- "Eu vim pra fazer a doação." - Disse Zé do Pó com segurança e desta vez com a cabeça levantada. Neste ínterim chegou o Doutor Paulo, um dos dois grandes médicos da cidade naquela época:
- "Deixa o rapaz doar. A Santa Casa não está precisando de sangue? Então?" - Se dirigindo a enfermeira.
- "Ó Zé, você vai ter que ficar sem beber até amanhã, daí então você pode fazer a doação, está bem assim?" - Se dirigindo ao Zé.
A notícia se espalhou rapidamente pela pequena cidade, Zé havia permanecido toda a noite à frente da capela contígua à Santa Casa e quando foi doar, já nem mais necessitava pois praticamente todos os adultos foram fazê-lo.
Zé do Pó virou uma lenda viva com este pequeno e nobre ato, muito dele se falava. Diziam que danou a beber pois tinha tido um decepção amorosa quando foi morar em São Paulo, diziam que ele era engenheiro ou que era médico e tantas outras coisas que nunca foram confirmadas.
Um dia Zé do Pó foi buscar lenha e, por mais absurdo que possa parecer, cortou o próprio galho da árvore onde estava sentado. Zé do Pó ao pó voltou. A cidade toda foi a seu velório.
Cada vez que faço uma doação é dele, do Zé do Pó que me lembro. "
Fonte: http://www.mdig.com.br/
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