Antônio Barreto
Quando conheci Valentina ainda era tempo de gabirobas, tanajuras, figurinhas e seriado de Roy Rogers na tela do Cine Roxy, na “ardeia”. Eu já gostava de escrever poemas em papel de embrulhar pão, para os amigos apaixonados conquistarem mais depressinha suas inefáveis namoradas. Tudo no presente do indicativo. Assim, compartilhávamos do mesmo amor platônico, aquele que sentíamos, quase sempre, pelas mesmas meninas. Era um artifício: sem que ninguém soubesse, me declarava a elas pegando carona no meu próprio poema, que era, na verdade, “para o meu amigo”. E aquelas viagens de febre e insônia, nos tapetes voadores da paixão, assolavam nossa infância. Queimávamos por dentro o esplendor da relva que William Wordsworth, mais tarde, iria colocar nas cabeceiras de nossas camas. E se, na rua, a bola de meia sujava nossos dias com o suor das heróicas batalhas, em casa passávamos o amor a limpo. Sempre: um coração flechado no canto direito da página. E as trêmulas letras do cabeçalho: EU TE AMO.
Então, conheci Valentina, que chegou camuflada numa dessas tardes de primavera. Nesse tempo, eu já não sabia mais onde guardar a memória das coisas. Meu pai também fazia acrósticos, decorava dicionários, enquanto minha mãe cantava. Mas foi Valentina quem me ensinou, de repente, a respirar de um modo comprido. Na terra a gente pisa, mas é no ar que nos preparamos para as longas viagens. Devagar, ela me fez ver que o coração funciona melhor quando as mãos, os dedos, o cérebro e o pensamento pipocam de um jeito mais compassado, sem ânsias de pendurar verdades nas paredes do mundo. Esse que vem a reboque do que, no fundo, são os tijolos da mentira. E quase catando o milho dos sentimentos de ouro, no galinheiro das palavras mais bonitas de cantar, Valentina se sentou comigo debaixo da mangueira. E me soletrou as palavras-diamante, as palavras-pedra, as palavras-seda e as palavras-dor. E como sempre, sozinha, a palavra-saudade.
Um dia Valentina me mostrou também que um lenço, ou um papel em branco, agitado na estação do trem, não era gesto de adeus, mas desafio.
Algo ruiu por dentro de mim naquela despedida. Vim sozinho com os “eus” do outro que nela habitava. E fui, aos poucos, virando bicho urbano, um ser sem passarinho, sem formigas poliglotas, sem pescaria, sem gibi, sem matinê, sem vírgulas, sem namorada platônica e sem pecado. A saudade de Valentina, certa madrugada, adoeceu-me. E descobri que já não mais respirava pelo nariz, mas pelas reticências... Voltei para buscá-la. E com ela aprendi de novo onde colocar uma esquina, aquele olhar perdido do retrato, esse par de cotovelos esperando a chuva, as prováveis civilizações da Atlântida, as lendas que navegam numa mesa de bar, esses dois olhos negros mergulhados no vazio das luas suicidas, o menino que se arrasta pelo chão e quer que sua fome morda o rabo do cachorro, porque esse cheiro de outono úmido, quando e como essa mãe que chora, onde e por quem aquele cego procura, e essas quaresmeiras explodindo em tons de lilás os véus de noiva, no abril das tardes roxas de gás, em Belo Horizonte. E por que diabos eu ainda me levanto com essa frase, gravada nos lábios de Valentina: “Hoje é o dia mais feliz da minha vida!”
Daria tudo para resistir. Mas sou um homem fraco, reconheço. E ingrato. Sei que a indulgência é a maneira mais polida do desprezo. No entanto, Valentina já estava me deixando ultrapassado, analfabeto. Velha, ranzinza, caduca, o tempo nela ia timbrando suas marcas, e não tinha conserto. Alquebrada, já sofria de artrite nas juntas ressequidas, estalava como graveto seus longos e finos dedos, e a coluna: empenada. Pior: não entabulava mais coisa com coisa. Por isso nos separamos. Faz apenas uma semana, risquei Valentina de minha vida. Definitivamente.
Levado pelas mãos de amigos, conheci “a outra”. Fascinado, me enamorei à primeira vista por seu lay-out de mulher fatal, repleta de mistérios e outras coisas com as quais eu nunca havia imaginado: as curvas perfeitas, a voz dissimulada, insinuante, e o insaciável olhar de “quero mais”. Uma verdadeira “máquina”, de performance demoníaca.
É claro que daria tudo para sofrer de novo os mesmos percalços, os mesmos pesadelos e até os mesmos segredos inconfessáveis que mantive com Valentina. Mas sou um crápula: o tempo mudou, e “a outra” me seduziu com sua juventude. Nem sei ainda como ela se chama, ou se vai ficar para sempre. Só sei que tem mil maneiras de fazer um quarentão (que escreve por não saber modo melhor de amar ou de sofrer), se apaixonar.
Estou, irremediavelmente, perdido.
De noite, em suas entranhas de redes e labirintos – que se abrem como janelas que criam atalhos para outras janelas – configura à minha frente o estranho menu do novo mundo. Navego marinheiro de primeira viagem, sem memória do antes e do depois. E, com um pouquinho de culpa, vou tentando reorganizar os ícones existenciais que ficaram tatuados por dentro, na alma da velha companheira. Que ninguém os delete. Como deletaram os cinemas da minha aldeia, que viraram igrejas evangélicas. Mesmo porque, sempre haverá gabirobas e tanajuras por lá.
Adeus, Valentina!
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