terça-feira, julho 31, 2007

057 - 31/07/2007 - Quem manda

Segundo o comentário daquela que manda, meu post anterior está parecendo uma sequência interminável de agressões descabidas e desnecessárias. Chamou-me de rude e ordenou a imediata retratação. E visto que os fracos, enquanto indivíduos que zelam pela própria integridade, obedecem, deixo então um novo texto, não meu, mas que é muito bacana, apesar de incompreensível. Ou não. Pra vocês, a galinha.

De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo.
Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver o ovo nunca se mantêm no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto o ovo há três milênios. – No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. – Só vê o ovo quem já o tiver visto. – Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. – Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. – Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo. – Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo. – O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe.
Ver o ovo é impossível: o ovo é supervisível como há sons supersônicos. Ninguém é capaz de ver o ovo. O cão vê o ovo? Só as máquinas vêem o ovo. O guindaste vê o ovo. – Quando eu era antiga um ovo pousou no meu ombro. – O amor pelo ovo também não se sente. O amor pelo ovo é supersensível. A gente não sabe que ama o ovo. – Quando eu era antiga fui depositária do ovo e caminhei de leve para não entornar o silêncio do ovo. Quando morri, tiraram de mim o ovo com cuidado. Ainda estava vivo. – Só quem visse o mundo veria o ovo. Como o mundo o ovo é óbvio.
O ovo não existe mais. Como a luz de uma estrela já morta, o ovo propriamente dito não existe mais. – Você é perfeito, ovo. Você é branco. – A você dedico o começo. A você dedico a primeira vez.
Ao ovo dedico a nação chinesa.
O ovo é uma coisa suspensa. Nunca pousou. Quando pousa, não foi ele quem pousou. Foi uma coisa que ficou embaixo do ovo. – Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo. – Jamais pensar no ovo é um modo de tê-lo visto. – Será que sei do ovo? É quase certo que sei. Assim: existo, logo sei. – O que eu não sei do ovo é o que realmente importa. O que eu não sei do ovo me dá o ovo propriamente dito. – A Lua é habitada por ovos.
O ovo é uma exteriorização. Ter uma casca é dar-se.- O ovo desnuda a cozinha. Faz da mesa um plano inclinado. O ovo expõe. – Quem se aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa: está com fome.
O ovo é a alma da galinha. A galinha desajeitada. O ovo certo. A galinha assustada. O ovo certo. Como um projétil parado. Pois ovo é ovo no espaço. Ovo sobre azul. – Eu te amo, ovo. Eu te amo como uma coisa nem sequer sabe que ama outra coisa. – Não toco nele. A aura de meus dedos é que vê o ovo. Não toco nele – Mas dedicar-me à visão do ovo seria morrer para a vida mundana, e eu preciso da gema e da clara. – O ovo me vê. O ovo me idealiza? O ovo me medita? Não, o ovo apenas me vê. É isento da compreensão que fere. – O ovo nunca lutou. Ele é um dom. – O ovo é invisível a olho nu. De ovo a ovo chega-se a Deus, que é invisível a olho nu. – O ovo terá sido talvez um triângulo que tanto rolou no espaço que foi se ovalando. – O ovo é basicamente um jarro? Terá sido o primeiro jarro moldado pelos etruscos ? Não. O ovo é originário da Macedônia. Lá foi calculado, fruto da mais penosa espontaneidade. Nas areias da Macedônia um homem com uma vara na mão desenhou-o. E depois apagou-o com o pé nu.
O ovo é coisa que precisa tomar cuidado. Por isso a galinha é o disfarce do ovo. Para que o ovo atravesse os tempos a galinha existe. Mãe é para isso. – O ovo vive foragido por estar sempre adiantado demais para a sua época. – O ovo por enquanto será sempre revolucionário. – Ele vive dentro da galinha para que não o chamem de branco. O ovo é branco mesmo. Mas não pode ser chamado de branco. Não porque isso faça mal a ele, mas as pessoas que chamam ovo de branco, essas pessoas morrem para a vida. Chamar de branco aquilo que é branco pode destruir a humanidade. Uma vez um homem foi acusado de ser o que ele era, e foi chamado de Aquele Homem. Não tinham mentido: Ele era. Mas até hoje ainda não nos recuperamos, uns após outros. A lei geral para continuarmos vivos: pode-se dizer “um rosto bonito”, mas quem disser “O rosto”, morre; por ter esgotado o assunto.
Com o tempo, o ovo se tornou um ovo de galinha. Não o é. Mas, adotado, usa-lhe o sobrenome. – Deve-se dizer “o ovo da galinha”. Se eu disser apenas “o ovo”, esgota-se o assunto, e o mundo fica nu. – Em relação ao ovo, o perigo é que se descubra o que se poderia chamar de beleza, isto é, sua veracidade. A veracidade do ovo não é verossímil. Se descobrirem, podem querer obrigá-lo a se tornar retangular. O perigo não é para o ovo, ele não se tornaria retangular. (Nossa garantia é que ele não pode: não poder é a grande força do ovo: sua grandiosidade vem da grandeza de não poder, que se irradia como um não querer.) Mas quem lutasse por torná-lo retangular estaria perdendo a própria vida. O ovo nos expõe, portanto, em perigo. Nossa vantagem é que o ovo é invisível. E quanto aos iniciados, os iniciados disfarçam o ovo.
Quanto ao corpo da galinha, o corpo da galinha é a maior prova de que o ovo não existe. Basta olhar para a galinha para se tornar óbvio que o ovo é impossível de existir.
E a galinha? O ovo é o grande sacrifício da galinha. O ovo é a cruz que a galinha carrega na vida. O ovo é o sonho inatingível da galinha. A galinha ama o ovo. Ela não sabe que existe o ovo. Se soubesse que tem em si mesma o ovo, perderia o estado de galinha. Ser galinha é a sobrevivência da galinha. Sobreviver é a salvação. Pois parece que viver não existe. Viver leva a morte. Então o que a galinha faz é estar permanentemente sobrevivendo. Sobreviver chama-se manter luta contra a vida que é mortal. Ser galinha é isso. A galinha tem o ar constrangido.
É necessário que a galinha não saiba que tem um ovo. Senão ela se salvaria como galinha, o que também não é garantido, mas perderia o ovo. Então ela não sabe. Para que o ovo use a galinha é que a galinha existe. Ela era só para se cumprir, mas gostou. O desarvoramento da galinha vem disso: gostar não fazia parte de nascer. Gostar de estar vivo dói. – Quanto a quem veio antes, foi o ovo que achou a galinha. A galinha não foi sequer chamada. A galinha é diretamente uma escolhida. – A galinha vive como em sonho. Não tem senso de realidade. Todo o susto da galinha é porque estão sempre interrompendo o seu devaneio. A galinha é um grande sono. – A galinha sofre de um mal desconhecido. O mal desconhecido é o ovo. – Ela não sabe se explicar: “ sei que o erro está em mim mesma”, ela chama de erro a vida, “não sei mais o que sinto”, etc.
“Etc., etc., etc.,” é o que cacareja o dia inteiro a galinha. A galinha tem muita vida interior. Para falar a verdade a galinha só tem mesmo é vida interior. A nossa visão de sua vida interior é o que chamamos de “galinha”. A vida interior na galinha consiste em agir como se entendesse. Qualquer ameaça e ela grita em escândalo feito uma doida. Tudo isso para que o ovo não se quebre dentro dela. Ovo que se quebra dentro de galinha é como sangue.
A galinha olha o horizonte. Como se da linha do horizonte é que viesse vindo um ovo. Fora de ser um meio de transporte para o ovo, a galinha é tonta, desocupada e míope. Como poderia a galinha se entender se ela é a contradição de um ovo? O ovo ainda é o mesmo que se originou na Macedônia. A galinha é sempre tragédia mais moderna. Está sempre inutilmente a par. E continua sendo redesenhada. Ainda não se achou a forma mais adequada para uma galinha. Enquanto meu vizinho atende ao telefone ele redesenha com lápis distraído a galinha. Mas para a galinha não há jeito: está na sua condição não servir a si própria. Sendo, porém, o seu destino mais importante que ela, e sendo o seu destino o ovo, a sua vida pessoal não nos interessa.
Dentro de si a galinha não reconhece o ovo, mas fora de si também não o reconhece. Quando a galinha vê o ovo pensa que está lidando com uma coisa impossível. É com o coração batendo, com o coração batendo tanto, ela não o reconhece.
De repente olho o ovo na cozinha e vejo nele a comida. Não o reconheço, e meu coração bate. A metamorfose está se fazendo em mim: começo a não poder mais enxergar o ovo. Fora de cada ovo particular, fora de cada ovo que se come, o ovo não existe. Já não consigo mais crer num ovo. Estou cada vez mais sem força de acreditar, estou morrendo, adeus, olhei demais um ovo e ele me foi adormecendo.
A galinha não queria sacrificar a sua vida. A que optou por querer ser “feliz”. A que não percebia que, se passasse a vida desenhando dentro de si como numa iluminura o ovo, ela estaria servindo. A que não sabia perder-se a si mesma. A que pensou que tinha penas de galinha para se cobrir por possuir pele preciosa, sem entender que as penas eram exclusivamente para suavizar, a travessia ao carregar o ovo, porque o sofrimento intenso poderia prejudicar o ovo. A que pensou que o prazer lhe era um dom, sem perceber que era para que ela se distraísse totalmente enquanto o ovo se faria. A que não sabia que “eu” é apenas uma das palavras que se desenham enquanto se atende ao telefone, mera tentativa de buscar forma mais adequada. A que pensou que “eu” significa ter um si-mesmo. As galinhas prejudiciais ao ovo são aquelas que são um “eu” sem trégua. Nelas o “eu” é tão constante que elas já não podem mais pronunciar a palavra “ovo”. Mas, quem sabe, era disso mesmo que o ovo precisava. Pois se elas não estivessem tão distraídas, se prestassem atenção à grande vida que se faz dentro delas, atrapalhariam o ovo.
Comecei a falar da galinha e há muito já não estou falando mais da galinha. Mas ainda estou falando do ovo.
E eis que não entendo o ovo. Só entendo o ovo quebrado: quebro-o na frigideira. É deste modo indireto que me ofereço à existência do ovo: meu sacrifício é reduzir-me à minha própria vida pessoal. Fiz do meu prazer e da minha dor o meu destino disfarçado. E ter apenas a própria vida é, para quem viu o ovo, um sacrifício. Como aqueles que, no convento, varrem o chão e lavam a roupa, servindo sem a glória de função maior, meu trabalho é o de viver os meus prazeres e as minhas dores. É necessário que eu tenha a modéstia de viver.
Pego mais um ovo na cozinha, quebro-lhe a casca e forma. E a partir deste instante exato nunca existiu um ovo. É absolutamente indispensável que eu seja uma ocupada e uma distraída. Sou indispensavelmente um dos que renegam. Faço parte da maçonaria dos que viram uma vez o ovo e o renegam como forma de protegê-lo. Somos os que se abstêm de destruir, e nisso se consomem. Nós, agentes disfarçados e distribuídos pelas funções menos reveladoras, nós às vezes nos reconhecemos. A um certo modo de olhar, há um jeito de dar a mão, nós nos reconhecemos e a isto chamamos de amor. E então, não é necessário o disfarce: embora não se fale, também não se mente, embora não se diga a verdade, também não é necessário dissimular. Amor é quando é concedido participar um pouco mais. Poucos querem o amor, porque o amor é a grande desilusão de tudo o mais. E poucos suportam perder todas as outras ilusões. Há os que voluntariam para o amor, pensando que o amor enriquecerá a vida pessoal. É o contrário: amor é finalmente a pobreza. Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor. E não é prêmio, por isso não envaidece, amor não é prêmio, é uma condição concedida exclusivamente para aqueles que, sem ele, corromperiam o ovo com a dor pessoal. Isso não faz do amor uma exceção honrosa; ele é exatamente concedido aos maus agentes, àqueles que atrapalhariam tudo se não lhes fosse permitido adivinhar vagamente.
A todos os agentes são dadas muitas vantagens para que o ovo se faça. Não é o caso de se ter inveja pois, inclusive algumas das condições, piores do que as dos outros, são apenas as condições ideais para o ovo. Quanto ao prazer dos agentes, eles também o recebem sem orgulho. Austeramente vivem todos os prazeres: inclusive é o nosso sacrifício para que o ovo se faça. Já nos foi imposta, inclusive uma natureza adequada a muito prazer. O que facilita. Pelo menos torna menos penoso o prazer.
Há casos de agentes que se suicidam: acham insuficientes as pouquíssimas instruções recebidas e se sentem sem apoio. Houve o caso do agente que revelou publicamente ser agente porque lhe foi intolerável não ser compreendido, e ele não suportava mais não ter o respeito alheio: morreu atropelado quando saía de um restaurante. Houve um outro que nem precisou ser eliminado: ele próprio se consumiu lentamente na sua revolta, sua revolta veio quando ele descobriu que as duas ou três instruções recebidas não incluíam nenhuma explicação. Houve outro também eliminado, porque achava que “a verdade deve ser corajosamente dita”, e começou em primeiro lugar a procurá-la; dele se disse que morreu em nome da verdade com sua inocência; sua aparente coragem era tolice, e era ingênuo o seu desejo de lealdade, ele compreendera que ser leal não é coisa limpa, ser leal é ser desleal para com todo o resto. Esses casos extremos de morte não são por crueldade. É que há um trabalho, digamos cósmico, a ser feito, e os casos individuais infelizmente não podem ser levados em consideração. Para os que sucumbem e se tornam individuais é que existem as instituições, a caridade, a compreensão que não discrimina motivos, a nossa vida humana enfim.
Os ovos estalam na frigideira, e mergulhada no sonho preparo o café da manhã. Sem nenhum senso da realidade, grito pelas crianças que brotam de várias camas, arrastam cadeiras e comem, e o trabalho do dia amanhecido começa, gritado e rido e comido, clara e gema, alegria entre brigas, dia que é o nosso sal e nós somos o sal do dia, viver é extremamente tolerável, viver ocupa e distrai, viver faz rir.
E me faz sorrir no meu mistério. O meu mistério é que eu ser apenas um meio, e não um fim, tem-me dado a mais maliciosa das liberdades: não sou boba e aproveito. Inclusive, faço um mal aos outros que, francamente. O falso emprego que me deram para disfarçar a minha verdadeira função, pois aproveito o falso emprego e dele faço o meu verdadeiro; inclusive o dinheiro que me dão como diária para facilitar a minha vida de modo a que o ovo se faça, pois esse dinheiro eu tenho usado para outros fins, desvio de verba, ultimamente comprei ações na Brahma e estou rica. A isso tudo ainda chamo de ter a necessária modéstia de viver. E também o tempo que me deram, e que nos dão apenas para que no ócio honrado o ovo se faça, pois tenho usado esse tempo para prazeres ilícitos e dores ilícitas, inteiramente esquecida do ovo. Esta é a minha simplicidade.
Ou é isso mesmo que eles querem que me aconteça, exatamente para que o ovo se cumpra? É liberdade ou estou sendo mandada? Pois venho notando que tudo que é erro meu tem sido aproveitado. Minha revolta é que para eles eu não sou nada, eu sou apenas preciosa: eles cuidam de mim segundo por segundo, com a mais absoluta falta de amor; sou apenas preciosa. Com o dinheiro que me dão, ando ultimamente bebendo. Abuso de confiança? Mas é que ninguém sabe como se sente por dentro aquele cujo emprego consiste em fingir que está traindo, e que termina acreditando na própria traição. Cujo emprego consiste em diariamente esquecer. Aquele de quem é exigida a aparente desonra. Nem meu espelho reflete mais um rosto que seja meu. Ou sou um agente, ou é a traição mesmo.
Mas durmo o sono dos justos por saber que minha vida fútil não atrapalha a marcha do grande tempo. Pelo contrário: parece que é exigido de mim que eu seja extremamente fútil, é exigido de mim inclusive que eu durma como justo. Eles me querem preocupada e distraída, e não lhes importa como. Pois, com minha atenção errada e minha tolice grave, eu poderia atrapalhar o que se está fazendo através de mim. É que eu própria, eu propriamente dita, só tenho mesmo servido para atrapalhar. O que me revela que talvez eu seja um agente é a idéia de que meu destino me ultrapassa: pelo menos isso eles tiveram mesmo que me deixar adivinhar, eu era daqueles que fariam mal o trabalho se ao menos não adivinhassem um pouco; fizeram-me esquecer o que me deixaram adivinhar, mas vagamente ficou-me a noção de que meu destino me ultrapassa, e de que sou instrumento do trabalho deles. Mas de qualquer modo era só instrumento que eu poderia ser, pois o trabalho não poderia ser mesmo meu. Já experimentei me estabelecer por conta própria e não deu certo; ficou-me até hoje essa mão trêmula. Tivesse eu insistido um pouco mais e teria perdido para sempre a saúde. Desde então, desde essa malograda experiência, procuro raciocinar desse modo: que já me foi dado muito, que eles já me concederam tudo o que pode ser concedido; e que os outros agentes, muito superiores a mim, também trabalharam apenas para o que não sabiam. E com as mesmas pouquíssimas instruções. Já me foi dado muito; isto, por exemplo: uma vez ou outra, com o coração batendo pelo privilégio, eu pelo menos sei que não estou reconhecendo! Com o coração batendo de emoção, eu pelo menos não compreendo! Com o coração batendo de confiança, eu pelo menos não sei.
Mas e o ovo? Este é um dos subterfúgios deles: enquanto eu falava sobre o ovo, eu tinha esquecido do ovo. “Falai, falai”, instruíram-me eles. E o ovo fica inteiramente protegido por tantas palavras. Falai muito, é uma das instruções, estou tão cansada.
Por devoção ao ovo, eu o esqueci. Meu necessário esquecimento. Meu interesseiro esquecimento. Pois o ovo é um esquivo. Diante de minha adoração possessiva ele poderia retrair-se e nunca mais voltar. Mas se ele for esquecido. Se eu fizer o sacrifício de esquecê-lo. Se o ovo for impossível. Então – livre, delicado, sem mensagem alguma para mim – talvez uma vez ainda ele se locomova do espaço até esta janela que desde sempre deixei aberta. E de madrugada baixe no nosso edifício. Sereno até a cozinha. Iluminando-a de minha palidez.
(O Ovo e a galinha - Clarice Lispector. In: Felicidade Clandestina: José Olympio, 1975)

domingo, julho 29, 2007

056 - 29/07/2007 - A cria

Quando o leão voltou da caça encontrou sua cria desamparada. Haviam outros leões na caverna mas ele só olhava para a cria. Deu-lhe um pedaço de carne e confortou-a. Em seguida avançou com toda sua fúria sobre os outros leões. Todos entenderam o recado.
Se você não é protetor então você é agressor.

quarta-feira, julho 18, 2007

055 - 18/07/2007 - Quarenta graus

Tirei esse print do meu computador agora, e foi um pouco tarde. Estava em 40 graus mais cedo.
Quando cheguei aqui, a temperatura variava entre 0 e 5 graus.
Depois o inverno apertou e a temperatura variava entre -10 e -15 graus.
Mês passado chegou o verão e a temperatura começou a oscilar entre 30 e 35 graus.
Hoje chegamos a 40, e acho que ainda vamos chegar a 41.
Depois dizem que o nosso clima é doido.
Doido, eu vou te falar, doido é o clima que, em menos de 6 meses varia 55 graus.
Isso é clima doido.
As meninas estão saindo, literalmente, de camisola pra rua.
Algumas saem de camisa de malha, calcinha e chinelo.
A mulher só de roupa íntima em frente ao nosso prédio nem se dá ao luxo de fechar a cortina ou mesmo de ver se tem alguém olhando antes de ir para a varanda fumar. Vai lá e fica, igual a uma lagartixa, fumegando e quarando ao sol.
Já vi 3 pessoas desmaiadas nas ruas da cidade e no metrô. O povo desorientado, o calor insuportável para eles. Os homens de cueca na porta de casa são uma afronta. Todo mundo indo trabalhar de sandália ou havayanas mesmo. A moda, que aqui já não tem força, é esquecida. Vista o que quiser, como quiser e da forma que quiser. Ninguém se importa. O verão aqui é quente. Muito quente. E os thermas são a salvação.
Quando esquenta muito eu logo penso em uma cerveja gelada.
Mas aqui não é o caso.
Aqui o negócio é água mesmo.
Água, muita água.
Não do Danúbio, que é podre, e nem as com gás, e nem as com sódio, e nem as com magnésio, e nem as fluoretadas, e nem as carbonadas, e nem as ionizadas, e nem uma das milhões de "variações da água" que vendem por aqui. Somente água. Still water. Água pura e gelada.
Ai ai...
Outro dia, dois velhinhos, no metrô, caíram escada rolante abaixo e eu, heroicamente, salvei os dois de se machucarem seriamente. Mas isso não tem nada a ver com o calor. É uma outra história.

terça-feira, julho 17, 2007

054 - 17/07/2007 - O jogo

E então havia o WarCraft III.
Como as pessoas faziam para passar o tempo antes dele eu não sei.
Como eu pude sobreviver até hoje sem esse jogo também não sei.
E como pode um par de CDs de joguinho pra computador deixar alguém assim, também, mais uma vez, não sei.

Sábado, nove horas da manhã.
O sol já esquentava o quarto desde quatro da madrugada e a ida para o Thermas "da ilha", aquele com toboáguas de 150 metros, estava garantida.
Gabriel e Davi dormiam, ainda se recuperando da noite onde guerrearam contra Orcs, Night Elfs e Undeads. Eu ligo o notebook e começo a brincar com o jogo, enquanto espero que acordem.
O Diego acorda.
E eu digo a ele que ele não passa de um verme rastejante quando o assunto é WarCraft.
Ele diz que se existe alguém que não vale o prato que come, esse alguém sou eu.
Carinhos trocados, desafio aceito.
Ele liga o notebook.
Ligamos um cabo de rede nos dois computadores.
Cada um com um CD.
Notebooks dispostos um de costas para o outro.
Começa o jogo.
No início tudo parece calmo.
Procuro ouro, madeira e itens para compor meu exército.
Treino "meus homens", como dizem nos filmes.
Estou forte e sou numeroso.
Com minha estratégia é fácil, pensei.
E parto pra cima do exército inimigo munido de soldados, arqueiros, cavaleiros, águias, heróis, peões, helicópteros, catapultas, fadas, lança-bombas e tudo o mais que eu tinha e que foi possível comprar ou construir.
No território inimigo o oponente resiste, mas não por muito tempo
A superioridade absoluta do meu exército é assombrosa, não há mais o que fazer...
A surra é generalizada
É possível ver a lágrima descendo dos olhos do derrotado.
São lágrimas fracassadas, infelizes. O oponente cai de joelhos.
O semblante se transforma e já dá para perceber a cara de cachorro que fez xixi no tapete e sabe que seu dono está chegando.
Os movimentos do mouse perdem a intensidade.
A aura escurece.
Enquanto isso me divirto olhando o massacre covarde dos bravos guerreiros sobre o exército puffy
E então,
Subitamente,
Durante um dos muitos recuos do inimigo,
E acidentalmente,
ele faz Uma descoberta,
no meio da batalha,
que dá início a uma pequena resistência.
A águia suicida.
Ela vai de encontro à minha e explode.
Águias suicidas, pensei, de onde veio isso?
E começa então uma reação em cadeia que segue em linha crescente e contrária à que se desenhava anteriormente.
Começo a enfraquecer.
Lutamos até não sobrar nenhum exército em campo. Nem meu, nem dele.
Fim da primeira batalha.

Mas a guerra não havia terminado e sob meu comando um novo exército estava sendo erguido.
Mas o lacaio mocorongo utiliza uma tática de ataque noturno.
E sorrateiramente constrói torres de destruição em massa bem próximas ao meu centro de comando.
Quando amanhece o dia
E antes que eu pudesse convocar meu novo exército
As torres entram em ação
Primeiro morre um soldado
Depois morrem dois
Já são dez
Cinquenta
Morrem todos
De fato, morrem quase todos
exceto um peão
Um mero trabalhador braçal
Tento escondê-lo
Mas chega alguém.
Assustadoramente maior que meu pobre peão
o golpe é único e suficiente.
Fim do jogo.
Eu perco a emocionante e empolgante disputa porque meu adversário aprendeu uma tática de guerra por acaso enquanto tentava fugir de mim.
As lágrimas agora estão no meu olho.
As lágrimas do bravo guerreiro. Lágrimas de ódio.
Porque eu odeio perder.
São três horas da tarde.
Já não dá mais pra ir ao thermas da ilha.
Amanhã a gente vai.
Agora é a vez dos meninos.
Dez horas da noite sou eu de novo.
Contra ele.
Porque eu odeio perder.

Warcraft III

sexta-feira, julho 13, 2007

The Runner

Este vídeo foi elaborado, produzido, filmado e distribuído pelo meu amigo Marcelo. O mesmo que cobrou a foto no blog outro dia.
A parte da filmagem em Budapeste foi feita por mim, basicamente a parte melhor...

Este vídeo precisa de som. Dura 4 minutos e é imperdível. De tão singelo. É uma comédia romântica com aventura. Liguem o áudio, relaxem e aproveitem a viagem.

segunda-feira, julho 09, 2007

Sugestão do dia

Hoje não dá pra escrever e então sugiro que leiam a segunda versão das coisas de Budapeste: O blog do Diego, meu irmão.

http://diegorodriguess.blogspot.com/

quarta-feira, julho 04, 2007

053 - 04/07/2007 - Verão em Budapeste

Dias desses relendo o blog preto, do meu irmão Diego, reparei que ele notou logo a essência ácida que paira no ar de Budapeste. O sol a pino, com temperaturas de 35 graus, faz com que os nativos andem pelas ruas com roupas que vão do "pouca-coisa" ao "quase-peladim". Já vi meninas com shorts que fazem aquele shortinho feminino de educação física parecer coisa de conservadores. Mas fato é que o verão está aí, para quem quiser ver e sentir. E, diferentemente do que eu imaginava, se eles não tomavam banho no frio, porque estava frio, também não o fazem no calor, e eu desconheço o motivo.
Quando entro no metrô pela manhã, para ir ao trabalho, percebo logo os sinais. Ainda que meu nariz esteja completamente entupido é possível saber que a maré está ácida, porque arde o olho. Aquele clima vinagrético que sobe pelas narinas e queima a mucosa é o mesmo que resseca e irrita a pupila. Eu sempre tenho a reação intuitiva de tentar, discretamente, verificar se sou eu. Mas é impossível. Para que o cheiro retorne a níveis humanos é preciso primeiro diluir a nuvem verde que cerca cada um.
Porém, todos são lindos. Lindos Fedidos. As mulheres que a gente vê nos outdoors no Brasil são apenas mais uma aqui nesse mar de lindas catinguentas. Não reparo tanto nos homens, por questões religiosas, mas segundo ouvi da Cláudia, também são uns bofes azedos.
Nós somos limpinhos, asseados, temos o estranho hábito de usar produtos químicos debaixo do braço para abrandar a força da natureza, usamos sabonete, passamos creminho e as mulheres depilam. E no entanto, as húngaras, proporcionalmente, são, em número, muito mais bonitas do que feias, ao contrário do Brasil.
Então eu só posso concluir que a beleza advém da sujeira.
Estou pensando em fazer o teste de embelezamento natural. Ficarei por uma semana sem banho e sem desodorante. Sob o sol do verão. Até adquirir a aura verde. Até sentir o xorume deslizando pelo pescoço. Até sentir a beleza começando a fluir no meu sangue. Até ficar lindo, branco, alto, forte e do olho azul. E fedido. Lindo fedido.

...

O chão era um quadrado, mas não com as quinas que tem todo quadrado. Era como se as quinas fossem cortadas e fosse feito um desenho em forma de ferradura religando as laterais. O chão então era um quadrado não muito grande e no local onde deveriam ser as dobras estavam outros pequenos cômodos, no formato de uma ferradura. E eu deveria ficar ali, no cômodo pequeno, em uma das pontas, em pé, olhando para o centro do quadrado.
Me disseram para ficar ali, mas eu não quis ficar, e então saí.
Algum tempo depois conheci uma pessoa no navio em que estávamos e que acabou tornando-se um amigo. Ríamos muito mas tínhamos nossas brigas. E uma delas foi muito séria. E foi nesse dia que aconteceu o pior. Meu amigo disse coisas que não se deve dizer, nem pensar, e que me magoaram muito. Desci para o porão do navio, um lugar apertado, frio, úmido e pequeno. Era um navio velho, daqueles em que as madeiras rangem. Bebi muito e então adormeci.
Quando acordei meu amigo estava na escada e gritava chamando os outros. Levantei-me e fui em sua direção mas ele não me olhava e apontava para o canto onde eu estivera dormindo, pouco antes de levantar. Seu rosto estava transformado e tomado pelo pânico. Eu olhava em seus olhos e pude ver quando ele disse que ele deveria estar morto. Quem será ele? Pensei. Olhei para o chão, para onde ele apontava, e me vi ali, parado, inerte. Mas aquele sou eu! E era. Eu estava na escada, mas já não me via. Sabia somente que de alguma forma eu me sentia em pé, na entrada do porão, e ao mesmo tempo me via no chão, um pouco mais à frente.
E novamente o chão era quadrado. E eu estava de pé na borda do quadrado, no cômodo pequeno, olhando para o centro. Disseram-me que eu deveria ficar ali, enquanto aguardava minha vez. Mas eu não quis ficar, e então saí.
Conheci uma menina por quem me apaixonei. Contava com pouco mais de vinte anos e tudo corria muito bem. Até que um dia ela me chamou. Disse que o tempo passou e que as coisas mudaram. Que seria injusto continuar comigo. Que eu estaria entregando todo o meu amor para alguém que não me amava. Não havia mais volta, dizia ela. Estava terminado. Não consegui suportar a dor. Fechei a porta do quarto e chorei até adormecer. No outro dia levantei melhor, caminhei até a janela e olhei para baixo. Vi a enorme multidão. Havia uma ambulância e muito barulho. E então eu me vi.
De novo o chão quadrado. Eu em pé, no cômodo pequeno. Em silêncio. Olhando fixo para o centro.
Disseram para eu ficar e esperar. Resolvo que dessa vez vou esperar.
Mas não consigo.
Saio do cômodo pequeno mas não vou embora. Caminho para o centro do quadrado.
Olho para cima, na direção do teto e há uma porta. Está aberta, mas eu não subo.
Dou um giro para ver as quatro entradas, uma em cada ponta do quadrado.
O meu cômodo está vazio e existem outros três. Outras pessoas estão ali, paradas, em pé, olhando para o centro, e neste momento, também olhando para mim.
Há uma placa na entrada de cada cômodo.
Em todas elas está escrito a mesma coisa. Não me esforço para ler, não quero ficar ali.
Então um anjo se aproxima, e gentilmente me pede para que volte ao meu cômodo e aguarde.
Estou cansado demais para dialogar, e resolvo caminhar de volta.
Para o meu cômodo, para o silêncio.
Para o eterno olhar fixo em direção ao centro do quadrado.
Para a longa espera.
E enquanto caminho para a borda ainda consigo ler rapidamente aquela placa.
"Sob cuidados especiais"
E na linha de baixo
“Suicida”

segunda-feira, julho 02, 2007

052 - 02/07/2007 - Risco de vida

O que pode ser mais perigoso, arriscado, estúpido e insano que cortar o cabelo da própria mulher?
Tudo começa muito simples: Pode cortar essas pontinhas que apareceram aí atrás...
E então o universo pára
e toda a população parece prender o ar e olhar pra você
O mundo fica em silêncio
Os pássaros estão mudos
E você com a tesoura na mão observa as madeixas
Respira fundo e começa a cortar
pensando se suas ações não são iguais às de um drogado
que sabe que aquilo irá lhe fazer muito mal
mas mesmo assim continua
Um pouco aqui e um pouco ali
Um pouco aqui e outro pouco ali
Cinco centímetros de cabelo
É o meu fim, você pensa
E então você acaba
Olha pra ela
E espera,
como que no jogo Street Fighter,
pelo golpe mortal.
Mas então,
surpreendentemente,
ela te olha e diz
que está bom assim
e você respira aliviado
porque sua vida foi poupada,
mas jura que dá próxima vez
não será tão ingênuo,
e quando avistá-la novamente com uma tesoura nas mãos
saíra correndo pela porta
em direção à rua
independente da hora
independente do dia
ainda que esteja chovendo
vestido ou pelado
na alegria ou na tristeza
na saúde ou na doença
para sua propria segurança
porque cortar o cabelo da propria mulher
e remédio pra dormir junto com laxante
são coisas erradas
e ninguém deve fazer.