sexta-feira, setembro 07, 2007

Ele tinha os cabelos cacheados, mais ou menos cinco anos, usava uma calça jeans já um pouco gasta nos joelhos. Tênis preto empoeirado, camisa branca de botão, rosto redondinho, daqueles que dão vontade de apertar. Olhava para o chão um pouco à frente de seus próprios pés e parecia que não pensava em nada. Eu olhava para ele com carinho e eu gostava dele.
Observar aquele menino que ficava entretido pegando a areia do chão e jogando de volta me dava uma sensação que há tempos vinha me faltando. Leveza, ou melhor, conforto, ou, melhor ainda, algo mais parecido com o que sentia aquela menina, quando encontrava-se com o fauno no filme "O labirinto do fauno". Alguma coisa como "que bom que você está aqui".
Enquanto eu observava eu via que às vezes ele me olhava e sorria. Um sorriso daqueles que a gente dá para o filho quando vê ele dormindo ou quando quer trocar um carinho à distância, com alguém que a gente gosta. Eu recordei minha infância, lá atrás, longe, quando pegar a areia do chão e jogar de volta era bom, quando não fazer nada e estar ali era bom, quando eu nem sabia que tudo era simples, porque tudo era simples.
Mas agora eu estava ali.
E o ar que estava calmo se agitou.
As veias se inflaram e ficaram visíveis. Os músculos se enrijeceram.
As nuvens fecharam o céu e tudo era frio.
Levantei-me ergui os braços e eu estava forte.
Em pé, já não havia mais criança.
E assim de súbito, e com toda a força desesperada de quem está sem saída, corri.
Contra o vento e contra a chuva, contra a tempestade e contra tudo. O céu era cinza mas não importava. Tudo era pouco e tudo era simples, tudo era fraco e tudo era possível.
Que seja e que venha. Se é inevitável que aconteça logo. E seja breve.
Pois eu ainda quero jogar a areia de volta.
E não vou parar antes de conseguir.

domingo, setembro 02, 2007

059 - 01/09/2007 - O dia que foi tudo na sequência

Outro dia machuquei meu joelho e já nem me lembro como foi. No dia seguinte o Demis me deu um aerosol para dores musculares.
- Como se usa isso?
- Aperta e joga sobre a parte machucada...
- Só isso?
- É. Vai esfriar um pouco, esquentar e aí acaba.
- Valeu.
Em casa troquei de roupa e fiquei imaginando como seria aplicar aquilo. Nunca usei spray assim... Como será? Puxei a bermuda para cima, mirei bem, pressionei o bico e fui borrifando em volta do meu joelho. Fiz um círculo, depois "preenchi" o meio, tendo o cuidado de não deixar nem uma parte sem o remédio. Outra volta, um pouco atrás da perna, dos lados e mais uma camada para encerrar. Pronto.
Cinco minutos se passaram.
Dez minutos.
- Cláudia, o Demis disse que ia gelar, esquentar, uma coisa assim mas até agora nada...
- Você passou direito?
- Acho que sim.
- Bem,...
- Espera... está começando a ficar frio... isso, está ficando frio agora... nossa, como gela...
Quinze minutos mais.
- Cláudia... a perna... o joelho... sabe... tá queimando muito...
- É? E aí?
- Tá queimando mesmo... Nossa... tá ficando insuportável isso... Nossa...
Vinte minutos.
Começo a andar pela sala, desnorteado, mãos na perna, que queimava como gelo na pele, aquela queimação que só o frio bem frio sabe fazer. Cláudia, Diego, Gabriel e Davi, parados, me olhando. Eu ali, a dor aumentando, o joelho vermelho e inchando, eu sentava e levantava, não sabia o que fazer.
Quarenta minutos.
Não resisti e as lágrimas vieram.
Um pouco mais tarde a dor diminuiu.
Cláudia estava na internet, com o Demis, o dono do ácido, argumentando sobre o que poderia ser feito.
- Cláudia, está parando...
No outro dia fico sabendo que deveria ter aplicado somente um único jato sobre o joelho.
Viro piada em casa e no trabalho.
Aquilo que parecia ser uma fogueira sobre minha perna foi esquecido.
O mico não.
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Nove dias depois...
Sábado, em casa eu, Cláudia, Diego, Gabriel e Davi. Homens jogando cartas, mulher na internet, em ritmo alucinante, numa sequência interminável de posts no blog.
Viramos a noite.
Homens jogando.
Mulher numa loucura desatada postando no blog num ritmo frenético desvairado.
Seis horas da manhã paramos tudo. Fim do jogo. Fim dos posts. Cartas guardadas.
O notebook suava e era quase possível ouvir ele dizendo: mulher doida...
Quando estava quase dormindo, ali entre o consciente e a hora em que segredos são revelados, o inesperado aconteceu.
Um mosquito.
Um único mosquito.
Um único maldito e excomungado mosquito.
Parecia que estava no quarto desde o dia anterior. Esperando para dar um rasante bem perto do ouvido assim que deitássemos.
Uma espécie de retaliação, dos amigos dos mosquitos que comi na ilha.
Mandaram o deus dos mosquitos. O melhor.
E então depois de muitas tentativas desisti. Levado pelo cansaço, adotei uma solução radical e um tanto quanto diferente. Levantei-me, fui até o banheiro, enchi a banheira com água morna, vesti uma sunga, entrei, deitei, apoiei a cabeça na borda e fui dormir.
Ahhhhh.... sim, o sono finalmente...
Mas ainda não passava de nove horas quando a Cláudia entrou no banheiro.
- Wander... o mosquito, o maldito e excomungado mosquito...
- Eu sei, vou sair daqui, vamos lá embaixo tomar um café.
Assim, nos apoiando mutuamente, fomos trocar de roupa enquanto reclamávamos sobre o transtorno causado por tão inescrupulosa criatura. Elemento amaldiçoado, repugnante. E sem sentimentos.
Odeio você, mosquito.
Tirei a toalha, vesti uma bermuda e botei a camisa sobre a cama.
Quando terminei de passar o desodorante, e no momento em que esticava o braço para guardá-lo, tive um visão daquilo que me parecia ser o pior dos infernos... horrível.
Torcendo para estar enganado, olhei primeiro para o armário.

Mas eu estava certo.

E numa última tentativa, olhei para minha mão de novo.
E eu realmente estava certo.
- Cláudia...
Eu já começava a sentir os efeitos.
- O spray...
E foi então que ela entendeu que, naquele momento, eu havia aplicado, debaixo dos dois braços, e logo após sair do banho quente, a maior quantidade de spray para dores musculares que um ser humano já usou em toda sua existência.
O aerosol. É, o do joelho.
Corri para o banhheiro, entrei no chuveiro e joguei água, mas era tarde.
Primeiro o calor...
Corri para a cama, deitei com os braços estendidos para cima. Em vão.
Depois o frio...
A Cláudia no chão, deitada, quase morrendo, de tanto rir...
O suor frio...
Eu recordava meu joelho.
A vermelhidão...
Enquanto isso a Cláudia se contorcia, não de dor, mas de tanto rir...
foi quando começou a queimação...
O resto foi apenas dor. Muita dor.
E lágrimas.
...
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Eu ainda teria pensado que o domingo não foi de todo ruim se logo após ter descoberto o signifcado de axilas efervecentes eu não tivesse caído com as costas sobre o braço da cadeira da sala.
"Passa o spray..." foram as palavras do Diego.
...
...
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Semana que vem, quando eu estiver melhor, farei uma fogueira na ilha, bem grande, monumental.
E vou entoar cânticos e bailar em volta do fogo.
E como que em um transe hipnótico vou chorar de felicidade enquanto me despeço e atiro sobre as chamas: o spray, o mosquito, o Diego.